DO
MISTÉRIO DA NOSSA DESVALORIZAÇÃO
Prof Eduardo
Simões
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A existência de professores numa
sociedade é o primeiro sintoma da existência de uma civilização complexa. Isso
é fácil de constatar, observando as sociedades tribais, de tecnologia simples,
onde todos são, de alguma forma, aparentados, e, ao mesmo tempo, professores,
ensinando às crianças com a sua própria vida, o que, em termos de coerência e
manutenção estrutural, é algo excelente.
O aparecimento do professor ocorre,
justamente, quando, graças ao avanço da tecnologia (descoberta da agricultura e
invenção da escrita), há a criação de excedentes alimentares e a complexificação
social, ambas implementadas pelo desenvolvimento do comércio, tornado possível
pelos excedentes. Esses ganhos sociais permitiram, e até impuseram, a criação
do Estado e o surgimento de profissionais não mais ligados diretamente à
produção, entre os quais se contam: os militares, os artistas, os sacerdotes e
os professores; alicerces tanto da manutenção quanto da transformação do
Estado, que a expressão simbólica da natureza de uma sociedade.
O Estado moderno, fruto do Iluminismo,
dispensou definitivamente o concurso dos sacerdotes e transferiu para os
professores aquilo que normalmente era função dos artistas, lhe justificar e cantar
os seus louvores – e assim surgem os intelectuais orgânicos – enquanto os
militares dividiram o seu papel histórico, com a polícia, quando o próprio povo,
diversificação da comunidade primitiva, tornou-se inimigo em potencial das
elites que controlam o Estado. Aparece a figura do inimigo interno, tratado sem
dó nem piedade, seja pela Inquisição seja pelos revolucionários franceses, que
vieram purgar o mundo dos pecados daquela...
O que importa é que, desde o seu começo,
a sociedade brasileira tinha todos os elementos que apontavam para o
aparecimento de uma civilização nova e brilhante: economia predominantemente agrícola,
integração às grandes rotas do comércio internacional, recepção de uma
estrutura de Estado já constituída, fragilidade dos grupos internos que se lhe
opunham: os índios. Entretanto, o estado português se manifestava, aqui, muito
fracamente, por meio de funcionários, que, longe do controle da metrópole,
tendiam a associar-se ao poder econômico em detrimento tanto dos moradores como
das próprias leis emanadas pelo rei, assim como, ao invés de educar os
resistentes, preferiu-se, por razões econômicas, obrigá-la a aderir compulsoriamente
ao projeto colonizatório. Na mesma toada vieram milhões de escravos africanos.
As condições para o desenvolvimento de
carreiras magisteriais no Brasil eram espetaculares: terras imensas a precisar
de trato e de toda sorte de cuidados aprendidos em escolas práticas e
científicas, tecnologias para aumentar a produtividade, e até o lucro dos
grandes, milhões de pessoas recém-chegadas precisando aprender uma nova cultura,
serem convencidas das vantagens do sistema, etc. etc. Mas a tudo isso
preferiu-se o caminho mais curto, e a palmatória, as correntes, o chicote, a
canga, a gargalheira, algemas, instrumentos de repressão e tortura, tornaram-se
não só a máxima expressão da tecnologia local disponível, como os professores
de dezenas de gerações de brasileiros. A sociedade colonial portuguesa
baseava-se na dupla repressão: a espiritual, movida por uma igreja controlada
pelo Estado, e a física, desempenhada por feitores, polícia e exército.
É a partir desse histórico nebuloso,
dramático, violento e muito hipócrita, que devemos analisar a situação atual
dos professores e a velocidade de possíveis mudanças nesse tratamento. Não que
não tenha havido progresso: antes se ameaçava os recalcitrantes com a chibata
ou a polícia, diretamente, hoje ameaça-se com a lei ou com um Judiciário, cuja
vocação para conceder “recursos” aos mais poderosos, ainda é muito
constrangedora para um país “civilizado”, “desenvolvido”.
Não há, na nossa tradição histórica,
qualquer movimento significativo para a criação de tecnologia ou cooptação de
resistentes, o que justificaria investimentos maciços na educação e na formação
de professores, e os nossos políticos, consciente ou inconscientemente, reproduzem
isto da forma mais canhestra. Com os resultados, desmoralizantes, em exames
mundiais, veio uma resposta absolutamente típica dos tempos de outrora: a culpa
é dos professores, os elementos mais frágeis da cadeia de absurdos em que se tornou a nossa
educação, e de agora em diante terão, inclusive que provar, por meio de uma
prova, que merecem aumento, ou que são capazes de fazer mais do que é sua
função precípua: ministrar conhecimento e formação a seus alunos. O professor é
a única categoria que precisa provar que merece aumento, e o Estado, com essa prática
odiosa, exprime o caráter escravocrata da nossa sociedade.
Isso não ocorre em detrimento da lei e
do querer social, pelo contrário, o Executivo e o Judiciário de São Paulo
apenas espelham a cultura escravocrata que os anima e move toda a sociedade,
que trata os seus professores com o desprezo com que os antigos gregos e romanos
tratavam aqueles que cuidavam de seus filhos, escolhendo-os entre os mais
boçais. Numa sociedade escravocrata, movida por interesses financeiros
imediatos, como a nossa atual, a criança é apenas despesa, um consumidor, não
produtor, e muitas parecem em lixões, envolvidas em sacos plásticos. Para nós
sua educação é despesa, e não investimento.
A mesma distorção se observa também no
que diz respeito à tecnologia. Para que investir em conhecimento e produção
tecnológica quando ainda há tanta mão de obra disponível, disposta a receber um
salário de miséria? Não é a toa que o nosso currículo valorize tanto a língua
portuguesa, afinal o discurso precioso é um dom da elite, e a matemática, que
abre as portas para as engenharias e os encantos da matemática pura, tarefa
também dignas da elite, enquanto as ciências, que ajudariam milhões a
aproveitar melhor os poucos recursos que têm, fica entregue às baratas. Os
laboratórios de ciências, mais caros, são fechados, em prol de experimentos
virtuais, feitos nas telas de computadores, com vantagens econômicas evidentes.
Houve alguma outra coisa na história do Brasil que importasse mais do que isso?
Dito isso só me resta alertar aos meus
queridos colegas professores, que, se previnam de grupos que tentam vender a
ilusão de que nosso calvário se deve apenas à miopia desse ou daquele grupo no
poder, e que, uma vez eles no poder, tudo mudará, isso é uma mentira ou uma
prova de miopia. Com esses grupos nós podemos até ter um momento de desafogo,
para perder tudo, com juro e correção monetária, no momento seguinte. O nosso
penar tem a sua raiz na própria concepção de educação e de criança, que jaz no
substrato da alma brasileira, ainda essencialmente escravocrata, e enquanto
esta não mudar, nos seremos sempre os primeiros e os que mais profundamente
sentirão as cobranças e o enxugamento da máquina de fazer dinheiro do estado
brasileiro, sempre que sobrevier uma crise.
Precisamos,
por enquanto, pensar em soluções factíveis, permanentes ainda que pontuais, que
possam servir de apoio a mudanças mais profundas na nossa educação... Quando
esse tempo chegar.
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