terça-feira, 21 de julho de 2015

DO MISTÉRIO DA NOSSA DESVALORIZAÇÃO

Prof Eduardo Simões

http://tvbrasil.ebc.com.br/sites/_tvbrasil/files/imagens-imce/caminhos_escravidao_01.jpg
http://humbertoadami.blogspot.com.br/

         A existência de professores numa sociedade é o primeiro sintoma da existência de uma civilização complexa. Isso é fácil de constatar, observando as sociedades tribais, de tecnologia simples, onde todos são, de alguma forma, aparentados, e, ao mesmo tempo, professores, ensinando às crianças com a sua própria vida, o que, em termos de coerência e manutenção estrutural, é algo excelente.
         O aparecimento do professor ocorre, justamente, quando, graças ao avanço da tecnologia (descoberta da agricultura e invenção da escrita), há a criação de excedentes alimentares e a complexificação social, ambas implementadas pelo desenvolvimento do comércio, tornado possível pelos excedentes. Esses ganhos sociais permitiram, e até impuseram, a criação do Estado e o surgimento de profissionais não mais ligados diretamente à produção, entre os quais se contam: os militares, os artistas, os sacerdotes e os professores; alicerces tanto da manutenção quanto da transformação do Estado, que a expressão simbólica da natureza de uma sociedade.
         O Estado moderno, fruto do Iluminismo, dispensou definitivamente o concurso dos sacerdotes e transferiu para os professores aquilo que normalmente era função dos artistas, lhe justificar e cantar os seus louvores – e assim surgem os intelectuais orgânicos – enquanto os militares dividiram o seu papel histórico, com a polícia, quando o próprio povo, diversificação da comunidade primitiva, tornou-se inimigo em potencial das elites que controlam o Estado. Aparece a figura do inimigo interno, tratado sem dó nem piedade, seja pela Inquisição seja pelos revolucionários franceses, que vieram purgar o mundo dos pecados daquela...
         O que importa é que, desde o seu começo, a sociedade brasileira tinha todos os elementos que apontavam para o aparecimento de uma civilização nova e brilhante: economia predominantemente agrícola, integração às grandes rotas do comércio internacional, recepção de uma estrutura de Estado já constituída, fragilidade dos grupos internos que se lhe opunham: os índios. Entretanto, o estado português se manifestava, aqui, muito fracamente, por meio de funcionários, que, longe do controle da metrópole, tendiam a associar-se ao poder econômico em detrimento tanto dos moradores como das próprias leis emanadas pelo rei, assim como, ao invés de educar os resistentes, preferiu-se, por razões econômicas, obrigá-la a aderir compulsoriamente ao projeto colonizatório. Na mesma toada vieram milhões de escravos africanos.
         As condições para o desenvolvimento de carreiras magisteriais no Brasil eram espetaculares: terras imensas a precisar de trato e de toda sorte de cuidados aprendidos em escolas práticas e científicas, tecnologias para aumentar a produtividade, e até o lucro dos grandes, milhões de pessoas recém-chegadas precisando aprender uma nova cultura, serem convencidas das vantagens do sistema, etc. etc. Mas a tudo isso preferiu-se o caminho mais curto, e a palmatória, as correntes, o chicote, a canga, a gargalheira, algemas, instrumentos de repressão e tortura, tornaram-se não só a máxima expressão da tecnologia local disponível, como os professores de dezenas de gerações de brasileiros. A sociedade colonial portuguesa baseava-se na dupla repressão: a espiritual, movida por uma igreja controlada pelo Estado, e a física, desempenhada por feitores, polícia e exército.
         É a partir desse histórico nebuloso, dramático, violento e muito hipócrita, que devemos analisar a situação atual dos professores e a velocidade de possíveis mudanças nesse tratamento. Não que não tenha havido progresso: antes se ameaçava os recalcitrantes com a chibata ou a polícia, diretamente, hoje ameaça-se com a lei ou com um Judiciário, cuja vocação para conceder “recursos” aos mais poderosos, ainda é muito constrangedora para um país “civilizado”, “desenvolvido”.
         Não há, na nossa tradição histórica, qualquer movimento significativo para a criação de tecnologia ou cooptação de resistentes, o que justificaria investimentos maciços na educação e na formação de professores, e os nossos políticos, consciente ou inconscientemente, reproduzem isto da forma mais canhestra. Com os resultados, desmoralizantes, em exames mundiais, veio uma resposta absolutamente típica dos tempos de outrora: a culpa é dos professores, os elementos mais frágeis  da cadeia de absurdos em que se tornou a nossa educação, e de agora em diante terão, inclusive que provar, por meio de uma prova, que merecem aumento, ou que são capazes de fazer mais do que é sua função precípua: ministrar conhecimento e formação a seus alunos. O professor é a única categoria que precisa provar que merece aumento, e o Estado, com essa prática odiosa, exprime o caráter escravocrata da nossa sociedade.
         Isso não ocorre em detrimento da lei e do querer social, pelo contrário, o Executivo e o Judiciário de São Paulo apenas espelham a cultura escravocrata que os anima e move toda a sociedade, que trata os seus professores com o desprezo com que os antigos gregos e romanos tratavam aqueles que cuidavam de seus filhos, escolhendo-os entre os mais boçais. Numa sociedade escravocrata, movida por interesses financeiros imediatos, como a nossa atual, a criança é apenas despesa, um consumidor, não produtor, e muitas parecem em lixões, envolvidas em sacos plásticos. Para nós sua educação é despesa, e não investimento.
         A mesma distorção se observa também no que diz respeito à tecnologia. Para que investir em conhecimento e produção tecnológica quando ainda há tanta mão de obra disponível, disposta a receber um salário de miséria? Não é a toa que o nosso currículo valorize tanto a língua portuguesa, afinal o discurso precioso é um dom da elite, e a matemática, que abre as portas para as engenharias e os encantos da matemática pura, tarefa também dignas da elite, enquanto as ciências, que ajudariam milhões a aproveitar melhor os poucos recursos que têm, fica entregue às baratas. Os laboratórios de ciências, mais caros, são fechados, em prol de experimentos virtuais, feitos nas telas de computadores, com vantagens econômicas evidentes. Houve alguma outra coisa na história do Brasil que importasse mais do que isso?
         Dito isso só me resta alertar aos meus queridos colegas professores, que, se previnam de grupos que tentam vender a ilusão de que nosso calvário se deve apenas à miopia desse ou daquele grupo no poder, e que, uma vez eles no poder, tudo mudará, isso é uma mentira ou uma prova de miopia. Com esses grupos nós podemos até ter um momento de desafogo, para perder tudo, com juro e correção monetária, no momento seguinte. O nosso penar tem a sua raiz na própria concepção de educação e de criança, que jaz no substrato da alma brasileira, ainda essencialmente escravocrata, e enquanto esta não mudar, nos seremos sempre os primeiros e os que mais profundamente sentirão as cobranças e o enxugamento da máquina de fazer dinheiro do estado brasileiro, sempre que sobrevier uma crise.

Precisamos, por enquanto, pensar em soluções factíveis, permanentes ainda que pontuais, que possam servir de apoio a mudanças mais profundas na nossa educação... Quando esse tempo chegar.   

Nenhum comentário:

Postar um comentário