sexta-feira, 3 de julho de 2015

“COMENTÁRIOS SOBRE AS CRÍTICAS DE VYGOTSKY A RESPEITO DE LINGUAGEM E PENSAMENTO E O JULGAMENTO E RACIOCÍNIO NA CRIANÇA” DE JEAN PIAGET - I 

Comentários do Prof Eduardo Simões [entre colchetes]


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 Uma das grandes paixões de Piaget, a biologia, em especial o trabalho de campo na natureza. Os Archives Jean Piaget, em Genebra, na Suiça, possui uma grande quantidade de informações sobre ele. Não deixe de visitar o seu site: www.archivesjeanpiaget.ch

            Segundo Piaget, esse comentário foi escrito a pedido de uma discípula de Vygostsky, a respeito de uma edição comemorativa de Pensamento e linguagem, do psicólogo soviético.
            Piaget começa lamentando não ter podido conhecer Vygotsky pessoalmente, ou mesmo por meio de suas obras, senão muito tempo após à sua morte, graças a apresentação feita por um ex-vygotskyano soviético, Alexander Luria (1902-1977) – nascido em 1896, Lev Semionovich Vygotsky, morreu em 1934, de tuberculose, em um período conturbado da história soviética , a ditadura stalinista, quando a União Soviética sofria um forte isolamento do resto do mundo, ao mesmo tempo que Vygotsky se isolava do seu grupo original de seguidores – salientando que a crítica de Vygotsky, escrita em 1934, versa apenas sobre os seus primeiros trabalhos, feitos entre 1923 e 1924, rascunhos ainda do que seria a sua grande obra, infelizmente não conhecida por ele, e que Piaget em parte ratifica e em outra retifica as críticas do soviético. Vejamos então:

            O egocentrismo cognitivo [começa aqui o texto de Piaget, traduzido diretamente do texto francês, Commentaires sur les remarques de Vygotsky concernant Le langage et la pensée che l’enfant et Le jugement et le raisonnement chez l’enfant; edição online de Archives Jean Piaget (www.archivesjeanpiaget.ch); a minha participação estará sempre entre colchetes e em itálico]
            A questão central levantada por Vygostsky é, na essência, aquela da natureza adaptativa e funcional das atividades da criança [adaptação ao meio e demonstração da organização interna, do pensamento, da criança], assim como de todo ser humano. Nesse ponto eu estou, no geral, plenamente de acordo com ele, e tudo aquilo que eu escrevi (após meus cinco primeiros livros) sobre o nascimento da inteligência no nível sensório-motor, e sobre a gênese das operações lógico matemáticas a partir das ações, me deixam hoje muito à vontade para situar o início do pensamento num contexto de adaptação cada vez mais biológico.
            Entretanto, afirmar que toda troca entre a criança e o meio tende para a adaptação não significa dizer que essa adaptação seja necessariamente bem sucedida no seu conjunto. É preciso nos guardar contra um otimismo biológico-social exagerado, para o qual Vygotsky resvala algumas vezes [já os vygotskyanos acusam Piaget de otimismo psicológico ou puramente biológico, como se as diversas etapas da inteligência acontecessem automaticamente, sem influência do meio, o que é um erro]. Há, com efeito, dois obstáculos em todo esforço de adaptação:
            1) O sujeito pode não ter ainda adquirido ou construído instrumentos ou órgãos de adaptação para realizar certas tarefas, porque a construção desses instrumentos é por vezes longa e difícil, como é o caso das operações lógicas cujos primeiros sistemas de equilíbrio não se constroem senão por volta dos sete oito anos...
            2) A adaptação, sendo um equilíbrio entre a assimilação de objetos às estruturas de ação do sujeito (estruturas tanto hereditárias [aquelas que o indivíduo herda geneticamente de seus país, como o seu corpo], como construídas pela organização progressiva das ações), e a acomodação dessas estruturas aos objetos, podendo acontecer que esse equilíbrio entre assimilação e acomodação tome formas não adequadas, de forma que o esforço de adaptação conduza então a erros sistemáticos.
            Acham-se erros sistemáticos desse tipo em todos os níveis de hierarquia de conduta. No campo da percepção... porque toda percepção contém uma parte de “ilusão”, e após haver estudado durante vinte anos a evolução desses erros sistemáticos da criança ao adulto [Piaget descobriu que a criança pré-operatória tem uma visão do todo mais apurada, ou pré-analítica, que os adultos, que as torna mais hábeis em achar a saída dos labirintos, podendo-se acrescentar aqui as chamadas ilusões de ótica], eu escrevi um livro...onde eu procuro relacionar essas erros múltiplos a mecanismos gerais fundados na centração do olhar que suscitam problemas semelhantes àqueles do egocentrismo [a criança pré-operatória só enxerga um detalhe de um todo por vez, julgando o conjunto por esse único detalhe, é claro que esse julgamento estará invariavelmente errado]. No plano da afetividade, é preciso uma grande dose de otimismo para imaginar que nossos sentimentos interindividuais sejam sempre bem adaptados, e que reações tão universais com as de ciúme, inveja, vaidade, etc., não apontem igualmente para diferentes formas de “erros sistemáticos” da perspectiva afetiva do individuo. No domínio do pensamento, toda a história das ciências, do geocentrismo [o sol gira ao redor da terra] à revolução copernicana [a terra é que gira ao redor do sol], dos falsos absolutos da física de Aristóteles, passando pela relatividade do princípio da inércia de Galileu [1], até à relatividade de Einstein, etc., nos mostra quantos séculos foram necessários para a ciência se libertar (e sem dúvidas só parcialmente), dos “erros sistemáticos” criados pela ilusão do ponto de vista imediato em oposição aos sistemas “descentrados”.
            A ideia central que eu exprimo por meio do termo “egocentrismo intelectual” é que o progresso do conhecimento não ocorre por simples adições ou estratificação aditiva [como se as novas aquisições de conhecimento formassem camadas sobre o conhecimento antigo], como se conhecimentos mais ricos e complexos viessem completar os mais pobres e simples, antes que esses progressos repousam permanentemente sobre correções de pontos de vista anteriores e atuais, por meio de processos tanto retroativos [tipo feedback] e aditivos [mas dinâmicos], que corrigem sem cessar esses “erros sistemáticos”, desde o início ou quando eles surgem durante o desenvolvimento. Ora, esse processo corretor sempre obedece a uma lei definida: a lei da descentração. Para a humanidade passar do geocentrismo para o heliocentrismo foi necessário um esforço gigantesco. Da mesma forma na criança pequena, segundo a descrição que dei sobre a evolução do conceito de “irmão”, e que Vygotsky aprova, ocorre um esforço semelhante, como quando um menino forceja para aceitar que seu irmão também tem um irmão, e que essa noção repousa sobre uma relação de reciprocidade e não sobre a “posse absoluta” [como se a criança dissesse, “meu” irmão é “meu” e de mais ninguém, e o fato de ter um irmão lhe desse uma vantagem, que ela não compartilha com mais ninguém]... (continua)

[nesse primeiro trecho Piaget começa a esclarecer um termo que deu muito estresse na compreensão de sua obra por Vygotsky, que seria o célebre “egocentrismo”, depois nós veremos porque, capital na teoria do suíço. O que Piaget diz nesses primeiros parágrafos é que não basta por uma criança para interagir com o meio (sociohistóricocultural) que, embora necessário, não é suficiente para provocar mudanças qualitativas no pensamento, ou mesmo para levar nessa ou naquela direção o processo de desenvolvimento. Se isso por se só fosse possível as ditaduras se eternizariam e as democracias bem-sucedidas também, e o computador teria todo o poder que burocratas, empresários do setor e intelectuais deslumbrados dizem que ele tem. A primeira dificuldade no processo de interação social, portanto, é o egocentrismo natural da criança, uma característica genética da espécie, ligado às condições gerais do seu desenvolvimento]

Notas

[1] Isso acontece, segundo as palavras do professor José Lourenço Cindra, UNESP de Guaratinguetá, em seu interessante ensaio intitulado “Esboço da evolução histórica do principio da relatividade”, publicado na Revista Brasileira do Ensino de Física, vol. 16, nºs 1-4, 1994, edição online, porque “a partir de Galileu, foi se estabelecendo a convicção que não podemos detectar o estado de movimento retilíneo uniforme (movimento inercial) a menos que tomemos outro corpo como referencial.

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