1914 –
OBUSITE, A HERANÇA
Prof
Eduardo Simões
A coisa mais cruel nas comemorações do
centenário da Iª Guerra Mundial, este ano na França, foi sem dúvida a presença
dos alemães durante as comemorações, mostrando ao mundo que a amizade e a paz
entre as nações é preferível à guerra. Por que não pensaram isso em 1914? Essa
atitude relembra um pouco aquela passagem onde Jesus recrimina os fariseus que
iam render homenagem nos túmulos dos profetas. Por sorte não há mais nenhum
veterano desta guerra, oficialmente, vivo.
A Iª Guerra ocorreu no auge da Segunda
Revolução Industrial, quando os exércitos tiveram ao seu alcance um volume e
uma qualidade de armamento antes inimaginável, além de generais inimaginavelmente
indiferentes à sorte de seus comandados, valiosos demais para se aproximarem do
front, para saber o que se passava com o soldado comum. Este tinha de lidar nas
trincheiras com a lama, os ratos, as baratas, a visão e o cheiro contínuo de
carne humana voando pelos ares ou apodrecendo, a carne de um amigo, irmão ou
parente próximo, e o pior de tudo: a “obusite”, o “shell shock”, ou “choque de
guerra”.
A obusite, em francês, ou síndrome do
obus, a bala do canhão, ocorria quando os soldados, enfurnados em tocas dentro
das trincheiras, apertados uns contra os outros, escutavam o barulho
ensurdecedor das explosões, o chão tremendo furiosamente, enquanto pedaços do
teto caíam, lembrando-lhes a possibilidade de serem enterrados vivos, por horas
seguidas – o bombardeio prévio alemão a Verdun durou dez horas seguidas; no
Somme os ingleses cavaram tuneis por baixos dos alemães e os encheram de
explosivos; o indivíduo, junto com todos os seus camaradas, era lançado ao espaço
por uma explosão gigantesca. Quando, enfim, o limite era ultrapassado o
indivíduo entrava em estado de choque, a obusite.
E como eram estranhas as reações! Uns
ficavam catatônicos, completamente duros, havia zumbidos excruciantes nos
ouvidos, reações de amnésia e dor de cabeça intolerável, hipersensibilidade a
ruídos, labirintite, uma tremedeira tão extravagante quanto interminável –
enquanto estivesse acordado esse homem tremia de um jeito impossível de
reproduzir em situação de normalidade, seja pela extensão dos tremores seja
pela sua duração, talvez eles bem que preferissem se matar, mas como apontar a
arma e estourar os miolos quando você se treme todo? Faltavam-lhes condições de
vida e serenidade para buscar a própria morte... E, o que era mais trágico,
muitos estavam fisicamente perfeitos.
Os generais, a dezenas de quilômetros
do front, instalados nos belos castelos franceses, quando ouviam essas
histórias afirmavam categóricos. “É covardia, e lugar de covarde, é no pelotão
de fuzilamento”. Os franceses, que desde a sua famosa Revolução se viciaram em
execuções exemplares, saíram fuzilando com grande aparato esses “simuladores
canastrões”, causando forte e negativo impacto, os ingleses, que nas coisas
desse mundo sempre foram melhores que aqueles, iam fuzilando em surdina,
jogando desertores e pacifistas nas zonas mais bombardeadas, caçando seu
direito de voto, se sobreviviam.
Certa vez projetei um documentário
sobre a Iª Guerra para alunos do Fundamental e Médio de minha escola, e, para
desagrado meu, quando apareciam as cenas daqueles homens desgraçados a tremer
convulsivamente, a reação dos alunos foi de rir à larga. Quando isso aconteceu
com o 3º Ano do Ensino Médio, eu intervi, explicando o óbvio: o quanto aquilo
era sintoma de intenso e desumano sofrimento. Os alunos, aparentemente caíram
em si. A ignorância e a falta de cultura histórica não são nada se comparadas à
indiferença com o sofrimento alheio, se é que esta não deriva, pouco ou muito,
daquelas.
Em Liége, na Bélgica, 80 chefes de
estado se reuniram para rememorar o evento, a do Brasil não estava lá. Se
porventura um sobrevivente estivesse lá, ele bem que poderia pensar: “por duas
vezes a Europa e o mundo foram arrasados, e milhões de jovens, como eu, foram
aniquilados no corpo e na lama, só para se chegar à conclusão que a paz é
preferível e a convivência inevitável”. Mas que fazer, a união da Europa traz
vantagens ou oportunidades financeiras imperdíveis, e por elas do que as nações
não seriam capazes? O dinheiro que fez a guerra de 1914 é o mesmo que compra a
paz em 2014. Será que vai dar certo?
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