sábado, 11 de outubro de 2014


1914 – OBUSITE, A HERANÇA

Prof Eduardo Simões

         A coisa mais cruel nas comemorações do centenário da Iª Guerra Mundial, este ano na França, foi sem dúvida a presença dos alemães durante as comemorações, mostrando ao mundo que a amizade e a paz entre as nações é preferível à guerra. Por que não pensaram isso em 1914? Essa atitude relembra um pouco aquela passagem onde Jesus recrimina os fariseus que iam render homenagem nos túmulos dos profetas. Por sorte não há mais nenhum veterano desta guerra, oficialmente, vivo.
         A Iª Guerra ocorreu no auge da Segunda Revolução Industrial, quando os exércitos tiveram ao seu alcance um volume e uma qualidade de armamento antes inimaginável, além de generais inimaginavelmente indiferentes à sorte de seus comandados, valiosos demais para se aproximarem do front, para saber o que se passava com o soldado comum. Este tinha de lidar nas trincheiras com a lama, os ratos, as baratas, a visão e o cheiro contínuo de carne humana voando pelos ares ou apodrecendo, a carne de um amigo, irmão ou parente próximo, e o pior de tudo: a “obusite”, o “shell shock”, ou “choque de guerra”.
         A obusite, em francês, ou síndrome do obus, a bala do canhão, ocorria quando os soldados, enfurnados em tocas dentro das trincheiras, apertados uns contra os outros, escutavam o barulho ensurdecedor das explosões, o chão tremendo furiosamente, enquanto pedaços do teto caíam, lembrando-lhes a possibilidade de serem enterrados vivos, por horas seguidas – o bombardeio prévio alemão a Verdun durou dez horas seguidas; no Somme os ingleses cavaram tuneis por baixos dos alemães e os encheram de explosivos; o indivíduo, junto com todos os seus camaradas, era lançado ao espaço por uma explosão gigantesca. Quando, enfim, o limite era ultrapassado o indivíduo entrava em estado de choque, a obusite.
         E como eram estranhas as reações! Uns ficavam catatônicos, completamente duros, havia zumbidos excruciantes nos ouvidos, reações de amnésia e dor de cabeça intolerável, hipersensibilidade a ruídos, labirintite, uma tremedeira tão extravagante quanto interminável – enquanto estivesse acordado esse homem tremia de um jeito impossível de reproduzir em situação de normalidade, seja pela extensão dos tremores seja pela sua duração, talvez eles bem que preferissem se matar, mas como apontar a arma e estourar os miolos quando você se treme todo? Faltavam-lhes condições de vida e serenidade para buscar a própria morte... E, o que era mais trágico, muitos estavam fisicamente perfeitos.
         Os generais, a dezenas de quilômetros do front, instalados nos belos castelos franceses, quando ouviam essas histórias afirmavam categóricos. “É covardia, e lugar de covarde, é no pelotão de fuzilamento”. Os franceses, que desde a sua famosa Revolução se viciaram em execuções exemplares, saíram fuzilando com grande aparato esses “simuladores canastrões”, causando forte e negativo impacto, os ingleses, que nas coisas desse mundo sempre foram melhores que aqueles, iam fuzilando em surdina, jogando desertores e pacifistas nas zonas mais bombardeadas, caçando seu direito de voto, se sobreviviam.
         Certa vez projetei um documentário sobre a Iª Guerra para alunos do Fundamental e Médio de minha escola, e, para desagrado meu, quando apareciam as cenas daqueles homens desgraçados a tremer convulsivamente, a reação dos alunos foi de rir à larga. Quando isso aconteceu com o 3º Ano do Ensino Médio, eu intervi, explicando o óbvio: o quanto aquilo era sintoma de intenso e desumano sofrimento. Os alunos, aparentemente caíram em si. A ignorância e a falta de cultura histórica não são nada se comparadas à indiferença com o sofrimento alheio, se é que esta não deriva, pouco ou muito, daquelas.

         Em Liége, na Bélgica, 80 chefes de estado se reuniram para rememorar o evento, a do Brasil não estava lá. Se porventura um sobrevivente estivesse lá, ele bem que poderia pensar: “por duas vezes a Europa e o mundo foram arrasados, e milhões de jovens, como eu, foram aniquilados no corpo e na lama, só para se chegar à conclusão que a paz é preferível e a convivência inevitável”. Mas que fazer, a união da Europa traz vantagens ou oportunidades financeiras imperdíveis, e por elas do que as nações não seriam capazes? O dinheiro que fez a guerra de 1914 é o mesmo que compra a paz em 2014. Será que vai dar certo?

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