sábado, 18 de outubro de 2014

TEMPOS AMARGOS (UM REPARO HISTÓRICO)

Prôs Eduardo Simões

            A última vez que vi Lauro de Oliveira Lima foi num avento internacional promovido pela sua escola, A Chave do Tamanho, no Rio de Janeiro. Um simpósio de primeira linha que contou com a presença de pesquisadores europeus e norte-americanos, como o psicólogo piagetiano Hans Furth, com vários livros traduzidos no Brasil; o filósofo suíço Thomas Kesselring, que escreveu uma das melhores biografias de Piaget; Jacques Voneche, diretor dos Arquivos Jean Piaget, da universidade de Genebra, etc.
            Nesse evento, eu assisti a palestra de um jovem professor da Federal Fluminense, se ainda me lembro, e dele ouvi que os piagetianos, como Lauro de Oliveira Lima, nada sofreram com o golpe militar, querendo reforçar uma tese muito comum de uma certa esquerda fugaz, de que Piaget é um autor “burguês-liberal” no sentido mais pejorativo possível desse termo, o único que essa gente conhece, e que eles usam para tudo o que não conseguem entender ou têm preguiça de saber. Quanto a mim, não preciso me justificar diante de um crítico tão desprovido de informação quanto provido da audácia dos que ignoram, mas me emocionei pelo professor Lauro, porque não foi isso que ouvi dele e de seus filhos.
            Lembro-me de uma conversa que tivemos, eu e minha esposa, com a filha do professor Lauro, Ana Elisabeth, quando ela contou que logo após o golpe, o seu pai teria se encontrado com Darcy Ribeiro, e lhe colocado francamente que o sonho de revolucionar a educação brasileira acabara. Darcy, talvez em choque, continuava apegado ao seu status de ministro da educação, e continuava fazendo planos, como se nada tivesse acontecido. Pouco depois de deixarem o apartamento de Darcy receberam um telefonema do próprio, preocupado porque havia homens estranhos cercando o seu apartamento – prováveis agentes a serviço do golpe militar, que sempre apareciam quando alguém estava para ser preso ou assassinado, como aconteceu com Anísio Teixeira, Juscelino Kubitschek, etc. Lauro e a filha foram à casa de Darcy, e saíram com ele, de carro, correndo pelas ruas do Rio de Janeiro, para despistar os agentes, até que, seguros, o deixaram na casa de um amigo, de onde partiria para o exílio; o mesmo destino que mais tarde sofreu outro grande mestre da educação: Paulo Freire. Lauro recusou-se a sair do Brasil, mesmo porque não havia jeito de ele entrar num avião.
            A continuação dessa história eu ouvi quando fui com ele ao Colégio Agapito dos Santos, em Fortaleza. Ele contou-nos, a mim e a vários professores da escola, uma longa história, onde tudo começou com o pedido do prefeito de sua cidade natal, Limoeiro do Norte, para que ele autorizasse o uso do seu nome no grupo escolar do município com seu nome, ele relutou: “eu ainda tô vivo, pode ser que lá na frente não dê pra que preste”, contou-nos sorrindo, mas no final concordou.
            Quando estourou o golpe, ele resolveu vir com a família do Rio para o Ceará, “nós esperávamos que o Arraes fosse resistir”, e tomou o caminho pelo interior do país, fugindo da vigilância dos grandes centros no litoral, uma viagem que, segundo ele, durou um mês. Mas foi em vão, pois quando ele chegou Arraes já tinha sido preso, e tudo estava perdido, tendo então buscado refúgio em Limoeiro, com a sua parentela. Certo dia resolveu dar uma passada no grupo escolar que tinha o seu nome, bem a tempo de ver homens, numa escada, retirando a placa com o seu nome. Sabem como é promessa de político. Nesse momento ele passou a mãos sobre a cabeleira e disse, rindo nervoso: “eu viajei cinco mil quilômetros só pra ver isso!”
            Nesse período, ele estava em minha casa e nós ficamos sabendo que Paulo Freire estava em Fortaleza, participando de um evento na Faculdade de Pedagogia da Federal do Ceará (UFC). Ele ficou indócil, e queria de todo custo ir lá, rever o amigo de velha data. Fomos. Quando chegamos, Paulo estava sentado à mesa, e ao ver o recém-chegado levantou-se imediatamente, e abraçaram-se emocionados. Ver aqueles dois gigantes da educação brasileira ali, se abraçando, já de cabelos brancos, vítimas de um regime odioso e odiento, foi, para mim, impactante, mas percebi uma certa indiferença do auditório, e até hostilidade, à medida em que o evento prosseguia e se acentuavam a diferença na postura pessoal dos dois educadores, porque politicamente defendiam os mesmos ideais, e as pessoas nem notaram: Paulo sempre muito calmo, professoral, quase paternal, ou, na linguagem atual, politicamente correto, enquanto Lauro se mostrava provocador como sempre, politicamente incorreto, um profeta bíblico, e um profeta bíblico só pode suscitar um sentimento: ou adesão completa ou repulsa completa. Lauro foi rejeitado.
            No dia seguinte, passei na faculdade, para ver o impacto do acontecido. Havia um mural com várias fotos, em nenhuma delas aparecia Lauro de Oliveira Lima. Um dos maiores acontecimentos da educação brasileira, que tão cedo não se repetirá, com homens de tão grande envergadura, foi solenemente ignorado, com o agravante de que Lauro era gente da casa, os cearenses o repeliam pela segunda vez. Mas que fazer quando as organizações estudantis são teleguiadas por grupos políticos mais estreitos que a ponta de um alfinete, e as pessoas só querem ouvir o que lhe soa bem aos ouvidos, que reforça aquilo que elas já acreditam? Um autêntico piagetiano jamais faria isso, pois estaria traindo o conceito de crescimento a partir do binômio equilibração-desequilibração, descoberto por Piaget. A ditadura estava sendo derrotada nas ruas, mas continuava incólume na cabeça de estudantes e professores, daquela elite acadêmica.
            Depois veio a prisão, numa cela do 23º Batalhão de Caçadores, em Fortaleza – Elisabeth falou-nos que quando passavam diante do quartel o filho mais novo de Lauro dizia: “olha a casa do papai!” – os inquéritos por “subversão”, a aposentadoria compulsória miserável, com sete filhos, sem falar que a continuidade dos processos e o clima em Fortaleza, “as pessoas quando nos viam, mudavam de calçada, para não falar conosco”, forçaram a família a ir para o Rio, onde enfrentaram mais pobreza e humilhação, morando de favor na casa de parentes. Nessa época, o professor escrevia seus livros sentado em uma cama, com uma máquina de escrever sobre as pernas, depois de passar vários dias em estado de choque. A fibra nordestina falou mais alto, e a família venceu.
            Certa vez levei-o para casa de praia de minha irmã e o apresentei a minha mãe, que o admirava, mas ele, eu creio, lembrando-se dos episódios do passado, com certeza ele conhecia a família de minha mãe, e sabia que esta havia sido adepta do golpe militar. E ele foi duro, fez umas observações “pesadas”, como sempre fazia sempre que queria provocar o começo de um debate, ou uma conversa que não fosse estritamente formal. Minha mãe aguentou firme, como uma boa anfitriã, e o dia acabou em paz. Mas desse dia também guardo uma lembrança engraçada de uma história que ele contou do atual reitor da UFC, que, passeando pelas ruas de Roma, quando estudante, teria comentado: “que emoção, essas ruas onde Licurgo pisou!”, ao que um amigo respondeu: “fulano, se Licurgo pisou aqui foi como turista, porque Licurgo era grego”. Caerense não perde uma.
            Mas não era sempre em paz que acabavam as provocações do professor Lauro. Certa vez, no auditório da Universidade de Fortaleza, numa mesa com vários reitores, ele debochou tanto da situação, essa era a sua técnica preferida para ‘esquentar’ um debate, que um professor visitante, o italiano Domenico Battochio, tomando as dores da instituição, deu início a um bate-boca memorável com ele. Quando eu cheguei o ‘pau’ já estava quebrando, e eles se espinafravam reciprocamente em termos tão eruditos que eu estaquei, sem saber se acalmava a situação ou se chamava mais gente para ver e ouvir. Até minha esposa depois me questionou depois: “porque você ficou parado?” Memorável! Memorável! Que saudade!
            Anos depois o Ministro Jarbas Passarinho afirmou que os militares cometeram um erro ao perseguir o professor Lauro, seja porque pressentiram que as ideias deste nada tinham de comunismo, a inteligência do professor jamais lhe permitiria entrar num movimento tão estreito quanto esse, pelo menos naquele tempo, seja porque os militares já estavam isolados demais e queriam aliados de qualquer lado, mas o professor não caiu nesse canto de sereia, e aproveitou para alfinetar os destruidores de nosso melhor momento educacional: “o problema atual da educação no Brasil, disse ele após saber da fala do ministro, é de falta de neurônios, afinal ela é gerida por um passarinho...”
            As pessoas, porém, mudam, podem melhorar. Pena que o professor Lauro não tenha percebido o processo de mudança política, paulatina, de minha mãe. Tudo começou com a morte do Marechal Henrique Teixeira Lott, em 1984. Quando ela ouviu o jornalista na TV descrevendo a trajetória de Lott, sua defesa da constituição, da legalidade, sua resistência à Oligarquia Militar, ela, que fora uma janista de carteirinha, me disse: “eu não sabia que o Lott era tão bom (textual)”. E eu respondi: “vocês [as pessoas da sua geração] foram enganados”. Ela ficou calada, reflexiva. Suas mudanças continuaram até que ela se tornou decididamente uma pessoa de esquerda, e pagou caro por isso, uma vez que sempre convivera com ambientes e pessoas de matiz político inverso, e tão duro foi o isolamento, para ela, que pode até ter abreviado a sua vida, levando-a à morte em outubro de 1994, com 69 anos. Lauro morrerá em janeiro de 2013, com 92 anos.
            O professor Lauro, então, nada sofreu! Tolos sempre existirão, assim como as suas tolices, tornadas públicas a pretexto de tudo e de nada, até como forma de compensação de seu vazio intelectual. Cabe aos que não se cansam de pensar ou de “dar para o que preste”, fazer com que o sacrifício dessa gente tenha valido a pena.

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