TEMPOS AMARGOS (UM REPARO HISTÓRICO)
Prôs Eduardo Simões
A última
vez que vi Lauro de Oliveira Lima foi num avento internacional promovido pela
sua escola, A Chave do Tamanho, no Rio de Janeiro. Um simpósio de primeira
linha que contou com a presença de pesquisadores europeus e norte-americanos,
como o psicólogo piagetiano Hans Furth, com vários livros traduzidos no Brasil;
o filósofo suíço Thomas Kesselring, que escreveu uma das melhores biografias de
Piaget; Jacques Voneche, diretor dos Arquivos Jean Piaget, da universidade de
Genebra, etc.
Nesse
evento, eu assisti a palestra de um jovem professor da Federal Fluminense, se
ainda me lembro, e dele ouvi que os piagetianos, como Lauro de Oliveira Lima,
nada sofreram com o golpe militar, querendo reforçar uma tese muito comum de
uma certa esquerda fugaz, de que Piaget é um autor “burguês-liberal” no sentido
mais pejorativo possível desse termo, o único que essa gente conhece, e que eles
usam para tudo o que não conseguem entender ou têm preguiça de saber. Quanto a
mim, não preciso me justificar diante de um crítico tão desprovido de
informação quanto provido da audácia dos que ignoram, mas me emocionei pelo
professor Lauro, porque não foi isso que ouvi dele e de seus filhos.
Lembro-me
de uma conversa que tivemos, eu e minha esposa, com a filha do professor Lauro,
Ana Elisabeth, quando ela contou que logo após o golpe, o seu pai teria se
encontrado com Darcy Ribeiro, e lhe colocado francamente que o sonho de
revolucionar a educação brasileira acabara. Darcy, talvez em choque, continuava
apegado ao seu status de ministro da educação, e continuava fazendo planos,
como se nada tivesse acontecido. Pouco depois de deixarem o apartamento de
Darcy receberam um telefonema do próprio, preocupado porque havia homens
estranhos cercando o seu apartamento – prováveis agentes a serviço do golpe
militar, que sempre apareciam quando alguém estava para ser preso ou
assassinado, como aconteceu com Anísio Teixeira, Juscelino Kubitschek, etc. Lauro
e a filha foram à casa de Darcy, e saíram com ele, de carro, correndo pelas
ruas do Rio de Janeiro, para despistar os agentes, até que, seguros, o deixaram
na casa de um amigo, de onde partiria para o exílio; o mesmo destino que mais
tarde sofreu outro grande mestre da educação: Paulo Freire. Lauro recusou-se a
sair do Brasil, mesmo porque não havia jeito de ele entrar num avião.
A
continuação dessa história eu ouvi quando fui com ele ao Colégio Agapito dos
Santos, em Fortaleza. Ele contou-nos, a mim e a vários professores da escola,
uma longa história, onde tudo começou com o pedido do prefeito de sua cidade
natal, Limoeiro do Norte, para que ele autorizasse o uso do seu nome no grupo
escolar do município com seu nome, ele relutou: “eu ainda tô vivo, pode ser que
lá na frente não dê pra que preste”, contou-nos sorrindo, mas no final concordou.
Quando
estourou o golpe, ele resolveu vir com a família do Rio para o Ceará, “nós
esperávamos que o Arraes fosse resistir”, e tomou o caminho pelo interior do
país, fugindo da vigilância dos grandes centros no litoral, uma viagem que,
segundo ele, durou um mês. Mas foi em vão, pois quando ele chegou Arraes já
tinha sido preso, e tudo estava perdido, tendo então buscado refúgio em
Limoeiro, com a sua parentela. Certo dia resolveu dar uma passada no grupo
escolar que tinha o seu nome, bem a tempo de ver homens, numa escada, retirando
a placa com o seu nome. Sabem como é promessa de político. Nesse momento ele
passou a mãos sobre a cabeleira e disse, rindo nervoso: “eu viajei cinco mil
quilômetros só pra ver isso!”
Nesse
período, ele estava em minha casa e nós ficamos sabendo que Paulo Freire estava
em Fortaleza, participando de um evento na Faculdade de Pedagogia da Federal do
Ceará (UFC). Ele ficou indócil, e queria de todo custo ir lá, rever o amigo de
velha data. Fomos. Quando chegamos, Paulo estava sentado à mesa, e ao ver o
recém-chegado levantou-se imediatamente, e abraçaram-se emocionados. Ver
aqueles dois gigantes da educação brasileira ali, se abraçando, já de cabelos
brancos, vítimas de um regime odioso e odiento, foi, para mim, impactante, mas
percebi uma certa indiferença do auditório, e até hostilidade, à medida em que o
evento prosseguia e se acentuavam a diferença na postura pessoal dos dois
educadores, porque politicamente defendiam os mesmos ideais, e as pessoas nem
notaram: Paulo sempre muito calmo, professoral, quase paternal, ou, na
linguagem atual, politicamente correto, enquanto Lauro se mostrava provocador
como sempre, politicamente incorreto, um profeta bíblico, e um profeta bíblico
só pode suscitar um sentimento: ou adesão completa ou repulsa completa. Lauro
foi rejeitado.
No dia
seguinte, passei na faculdade, para ver o impacto do acontecido. Havia um mural
com várias fotos, em nenhuma delas aparecia Lauro de Oliveira Lima. Um dos
maiores acontecimentos da educação brasileira, que tão cedo não se repetirá,
com homens de tão grande envergadura, foi solenemente ignorado, com o agravante
de que Lauro era gente da casa, os cearenses o repeliam pela segunda vez. Mas
que fazer quando as organizações estudantis são teleguiadas por grupos
políticos mais estreitos que a ponta de um alfinete, e as pessoas só querem
ouvir o que lhe soa bem aos ouvidos, que reforça aquilo que elas já acreditam?
Um autêntico piagetiano jamais faria isso, pois estaria traindo o conceito de
crescimento a partir do binômio equilibração-desequilibração, descoberto por
Piaget. A ditadura estava sendo derrotada nas ruas, mas continuava incólume na
cabeça de estudantes e professores, daquela elite acadêmica.
Depois veio
a prisão, numa cela do 23º Batalhão de Caçadores, em Fortaleza – Elisabeth
falou-nos que quando passavam diante do quartel o filho mais novo de Lauro
dizia: “olha a casa do papai!” – os inquéritos por “subversão”, a aposentadoria
compulsória miserável, com sete filhos, sem falar que a continuidade dos
processos e o clima em Fortaleza, “as pessoas quando nos viam, mudavam de
calçada, para não falar conosco”, forçaram a família a ir para o Rio, onde
enfrentaram mais pobreza e humilhação, morando de favor na casa de parentes.
Nessa época, o professor escrevia seus livros sentado em uma cama, com uma
máquina de escrever sobre as pernas, depois de passar vários dias em estado de
choque. A fibra nordestina falou mais alto, e a família venceu.
Certa
vez levei-o para casa de praia de minha irmã e o apresentei a minha mãe, que o
admirava, mas ele, eu creio, lembrando-se dos episódios do passado, com certeza
ele conhecia a família de minha mãe, e sabia que esta havia sido adepta do
golpe militar. E ele foi duro, fez umas observações “pesadas”, como sempre
fazia sempre que queria provocar o começo de um debate, ou uma conversa que não
fosse estritamente formal. Minha mãe aguentou firme, como uma boa anfitriã, e o
dia acabou em paz. Mas desse dia também guardo uma lembrança engraçada de uma
história que ele contou do atual reitor da UFC, que, passeando pelas ruas de
Roma, quando estudante, teria comentado: “que emoção, essas ruas onde Licurgo
pisou!”, ao que um amigo respondeu: “fulano, se Licurgo pisou aqui foi como
turista, porque Licurgo era grego”. Caerense não perde uma.
Mas não
era sempre em paz que acabavam as provocações do professor Lauro. Certa vez, no
auditório da Universidade de Fortaleza, numa mesa com vários reitores, ele
debochou tanto da situação, essa era a sua técnica preferida para ‘esquentar’
um debate, que um professor visitante, o italiano Domenico Battochio, tomando
as dores da instituição, deu início a um bate-boca memorável com ele. Quando eu
cheguei o ‘pau’ já estava quebrando, e eles se espinafravam reciprocamente em
termos tão eruditos que eu estaquei, sem saber se acalmava a situação ou se chamava
mais gente para ver e ouvir. Até minha esposa depois me questionou depois:
“porque você ficou parado?” Memorável! Memorável! Que saudade!
Anos
depois o Ministro Jarbas Passarinho afirmou que os militares cometeram um erro ao
perseguir o professor Lauro, seja porque pressentiram que as ideias deste nada
tinham de comunismo, a inteligência do professor jamais lhe permitiria entrar
num movimento tão estreito quanto esse, pelo menos naquele tempo, seja porque
os militares já estavam isolados demais e queriam aliados de qualquer lado, mas
o professor não caiu nesse canto de sereia, e aproveitou para alfinetar os
destruidores de nosso melhor momento educacional: “o problema atual da educação
no Brasil, disse ele após saber da fala do ministro, é de falta de neurônios,
afinal ela é gerida por um passarinho...”
As
pessoas, porém, mudam, podem melhorar. Pena que o professor Lauro não tenha
percebido o processo de mudança política, paulatina, de minha mãe. Tudo começou
com a morte do Marechal Henrique Teixeira Lott, em 1984. Quando ela ouviu o
jornalista na TV descrevendo a trajetória de Lott, sua defesa da constituição, da
legalidade, sua resistência à Oligarquia Militar, ela, que fora uma janista de
carteirinha, me disse: “eu não sabia que o Lott era tão bom (textual)”. E eu
respondi: “vocês [as pessoas da sua geração] foram enganados”. Ela ficou
calada, reflexiva. Suas mudanças continuaram até que ela se tornou
decididamente uma pessoa de esquerda, e pagou caro por isso, uma vez que sempre
convivera com ambientes e pessoas de matiz político inverso, e tão duro foi o
isolamento, para ela, que pode até ter abreviado a sua vida, levando-a à morte
em outubro de 1994, com 69 anos. Lauro morrerá em janeiro de 2013, com 92 anos.
O
professor Lauro, então, nada sofreu! Tolos sempre existirão, assim como as suas
tolices, tornadas públicas a pretexto de tudo e de nada, até como forma de
compensação de seu vazio intelectual. Cabe aos que não se cansam de pensar ou
de “dar para o que preste”, fazer com que o sacrifício dessa gente tenha valido
a pena.
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